Lavínia, menina!

•03/02/2012 • Deixe um comentário

Eu vou ser titia e estou sentimental. Três histórias para celebrar a ocasião.

Tem mais cachinho que cabelo – como pode? Minhas férias estavam fadadas à cabeceira dos doentes da família, nenhuma viagem distante possível naquele ano, mas as visitas de Lavínia valiam por muitos quilômetros percorridos em desconhecidas paisagens.

O SORRISO DO LEÃO. OU: DENTE POR DENTE

– Vem, Lavínia. Vou te mostrar uma coisa – e guiei-a pelo jardim, mais mato do que canteiro.

Colhi a pequena flor e assoprei-a, bolota de pelúcia branca que se desfez sem resistência. Lavínia maravilhou-se. “O que é isso?”

– Dente-de-leão. Quer pegar mais?

Reuniu todo o espanto do mundo nos olhos. “Não! Ele vai me morder!”

Todos caem na gargalhada. Ela também, mesmo que desinteirada por completo da graça. E logo: “Não vai não, né? O dente aparece é quando ele ri, né?”

BURACO NEGRO

Da grama, a noite era tapete estendido pro olhar. Nenhuma lembrança acessível de céu mais estrelado. Longe de tudo, de volta à casa da nossa já remota infância, era ali o lugar exato para estarmos o mais perto possível de onde queríamos – de onde precisávamos?

– Uma estrela cadente!

– Também vi!

– Outra!

Tantas. Não acabava mais. E Lavínia: “Eu também tô vendo as estrelas”.

– Você tá vendo, bebê? – (para a mãe, ainda era bebê: três anos, apenas) – Não essas estrelas que estão piscando, umas que passam riscando o céu, assim ó, são as estrelas cadentes, é como se elas estivessem caindo, sabe?

“Hum”.

– Eu vi!

– Agora eu vi!

– Olha aquela!

– Nunca vi tantas!

E então Lavínia abriu o berreiro. “Não quero as estrelas caindo! Não vai sobrar nenhuma quando eu crescer!”

A MATÉRIA DOS SONHOS

Dessas pequenas glórias, que sem erro são as mais grandiosas, eu devia não falar, mas: quem apresentou Lavínia às bolhas de sabão fui eu.

Era aniversário da minha mãe. Tinha bolo, eu, meu pai, meu avô, três tias. E aí chegaram o Tio da Vó e Lavínia. O que há para crianças numa casa onde a última cresceu faz tempo?

Havia as revistas do meu portifólio e, numa delas, o brinde das super-bolhas. Abri o pacote (shrink quente, em termos técnicos), peguei o vidrinho (por um feliz acaso, era cor de rosa – Lavínia não se furtava ao clichê da cor preferida) e soprei. Para quê esses olhos tão grandes?, diria a Chapeuzinho, se Lavínia fosse o lobo.

Estendeu a mão, a bolha de sabão estourou assim que encontrou seu dedo: cadê o arco-íris que estava aqui?

Mais um sopro, muitas bolhas. Lavínia seguiu-as com os olhos, estupefata – dificilmente usarei esse adjetivo de novo com tanta propriedade – segurou minha mão, me encarou sem piscar e perguntou: “Era dentro de você que elas estavam?”

Impossível resposta

•13/07/2010 • 3 Comentários

A morte, o amanhã…

estão apenas disfarçados de desconhecidos.

São um mistério com prazo de validade.

O que está além de toda suposição

É o que diria aos meus dedos a textura do seu cabelo.

Uma calmaria

•13/06/2010 • 2 Comentários

Sensaboria. Cerveja quente, geladeira quebrada e torneira pingando – suando?

Eu: afundada no sofá como quem se atola irremediavelmente no pântano cômodo das adiações.

Eu: escutando imóvel os gemidos de bichinho doente das violetas estorricando ao sol.

Eu: preocupada com as previsões zodiacais, até sentir, pela areia na ponta dos dedos e pelo amarelo esfarelado das páginas, que lia o jornal do mês passado.

Este calor insuportável, sem aragens nem brisas, é o mesmo da tarde em que abandonei José. Não ventou desde então.

Na tarde em que me apaixonei, José estava de olhos fechados para que o vento não grudasse ciscos em suas retinas. Quando os abriu, fitei o castanho límpido das pupilas envidraçadas, espelho de mim numa moldura de cílios, e sorri.

Ele dizia que nosso amor era eterno. Eu não tinha ilusões: por isso, quando ventava, tinha o cuidado de cerrar suas pálpebras com carícias ou beijos.

Mas, na tarde em que abandonei José, a ventania veio com a falta de aviso das coisas que têm que ser, e eu não pude, como sempre fazia, proteger seus olhos das impurezas aladas. Quando fitei suas pupilas, o castanho antes vítreo estava manchado por grãos de areia, pólen, pelos. Nossa separação fez-se, então, inevitável. Porque eu percebi que os olhos de José estavam maculados para sempre, e eu nunca mais poderia, portanto, fitar neles meu próprio reflexo.

Escrito muito antigo, de 2003 ou 2004. Já foi publicado em Nada Direito, o blog do Pantera, e em outros espaços virtuais, sempre com modificações.

O conselho

•13/05/2010 • 2 Comentários

Um lampejo: a desconfiança mal nascera e já era certeza, certeza a me gelar as tripas, a esporear o coração impondo-lhe galope, a emprestar às minhas ações uma agilidade de presa acuada. Um lampejo: “não diga seus nomes verdadeiros”, soprou-me minha própria voz ou alguém a imitá-la, e eu soube que era preciso obedecer.

Antes que meus irmãos pudessem fazê-lo por conta própria, eu os apresentei um a um, trocando uma letra ou uma sílaba de seus nomes para transformá-los em outros. Cássia, Selma, Denito e eu, Taíza. Os três estavam atônitos e foi sua estupefação que os impediu de me corrigirem e colocarem, assim, tudo a perder.

A velha amoleceu seu olhar para lançá-lo aos cães enfileirados na porta, orelhas eretas, focinhos opacos. Antes desta tarde eu seria capaz de jurar que jamais sentiria medo de cão algum. Ela me empurrou papel e caneta: “Anote aí para mim”. Torci para que ela acreditasse que era por causa das roupas encharcadas que eu tremia ao devolver-lhe o papel, com cuidado para que nossas mãos não se tocassem. “Vocês sabem voltar?”. Acenamos que sim e ela nos deixou ir, após um mudo acordo com os cães.

Junto com os ruídos da correnteza cada vez mais próxima vieram as primeiras palavras: “Você mentiu”. Atravessamos a ponte e eu olhei para trás, para as sombras do poente que já engoliam a casa de janelas compridas: “Vocês viram? Foi o primeiro lugar a ficar escuro”. “Thaís, eu acho que você bebeu demais”, protestou o caçula, retomando a caminhada. Esforçou-se por alcançar uma entonação imperativa, a súplica ainda aparente sob a reprovação: “Você precisa aprender a nadar”.

Das obras que me ganharam pelo título

•01/05/2010 • Deixe um comentário

Este pode parecer um critério no mínimo insuficiente, mas há como não gostar, mesmo sem tê-lo lido, de um livro chamado Eu Ouviria as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios? Ou de A Insustentável Leveza do Ser?

Mas meu fraco mesmo são as obras em língua espanhola, principalmente as latinas: Rayuela. Dias y Noches de Amor y de Guerra. Del Amor y Otros Demónios. Não só os livros. Também os filmes: El Secreto de Sus Ojos. Plata Quemada. El Abrazo Partido. El Mismo Amor, La Misma Lluvia.

E as bandas: Nito Mestre y Los Desconocidos de Siempre. Los Auténticos Decadentes. Los Abuelos de La Nada. E, claro, Me Darás Mil Hijos.

A meu pedido

•01/05/2010 • 4 Comentários

Meus recursos são infindáveis quando o que está em jogo é protelar a faxina. Eis que a vassoura concordou em esperar que eu escrevesse as linhas abaixo.


Eu tentei te dizer:

Não se preocupe comigo.

Não me atirarei nas águas de nenhum rio fundo

E o meu cotidiano não irá desmoronar:

É bem-feita a sua fundação sob as miudezas diárias.

Preparar o café.

Acrescentar papel higiênico à lista de compras.

Trocar a cor do esmalte.

Bater o ponto no horário estipulado.

Nenhum atraso no relatório mensal de pontualidade.

Não se preocupe comigo.

Ocuparei o meu coração com um bilhete de loteria

E não desaprenderei a olhar para as nuvens

Pois persiste a dúvida: serão mais belas assim ou quando chovem?

Choverá.

Fará sol.

Em algumas noites haverá estrelas

E em outras, é sabido, não.

Não se preocupe comigo, eu tentei dizer,

Como se suas costas, à distância já, fossem todas ouvidos.

Eu sabia que meu apelo era desnecessário

– você não se preocuparia.

Mas agora estava justificado perante a mim mesma o seu descaso.

Ciranda dos enganos

•25/04/2010 • Deixe um comentário

De segunda a sexta-feira, é preciso amarrar ao indicador a imaginária fita vermelha do lembrete: não confunda com interesse um cumprimento que é mera burocracia. Inútil precaução: é inevitável que as mariposas dancem ao redor da lâmpada acesa e é inevitável que um cão faça festa ao receber restos.

Confissões

•25/04/2010 • 1 Comentário

Minha última aquisição literária foi Cascata de Cuspe, de João Roberto Marinho, pescada entre os títulos empoeirados e pretensamente ordenados por sobrenome de autor do sebo do Bau. Me dirigi ao caixa e a vendedora me disse, em tom de confidência: “Ai, eu também adoro as aventuras da turma do Gordo, confesso”.

“Confesso”, minha senhora? Engraçado essa galera que rotula com um “confesso” declarações que não trazem nenhum risco moral. Confissão que se preze tem que manchar sua reputação, minha senhora, ainda que reputação seja uma grande bobagem, arriscável quando os outros descobrem que:

Eu li e reli todos os livros do Harry Potter. Estou esperando a próxima grande promoção do Submarino para comprar a coleção completa, que ocupará lugar de honra na minha estante: ou seja, o lugar mais acessível.

Eu assisto à trilogia d’O Senhor dos Anéis todas as vezes em que é reprisada, ainda que seja exibida a versão dublada.

O disco que eu mais ouvi nesta semana foi O Descobrimento do Brasil – Legião Urbana, que por sinal ainda não saiu da playlist para os próximos dias.

Crônica fútil

•21/04/2010 • 2 Comentários

Perder peso é a mais óbvia das obsessões modernas – até quem não precisa quer. Eu estou na direção oposta: quero engordar. Peso 43 quilos e pretendo chegar aos 50, medida que faz meus interlocutores arregalarem os olhos em reprovação: “Também não precisa exagerar, né? Assim você vai ficar gorda!”. Mas eles não precisam se preocupar: eu não engordo um quilo sequer, apesar das tentativas. Ou, quando engordo, perco a troco de nada: uma gripe à-toa, dessas tratáveis com mel-e-limão, só vai embora depois de me levar uns bons centos de gramas, que eu levo semanas para recuperar – quando recupero.

E os entusiastas do peso-pena, que veem neste meu metabolismo atrapalhado um motivo de inveja, me alfinetam o tempo todo para que eu mude de assunto, como se no fundo eu estivesse me gabando das calças que não servem: caem. Eu até pararia de falar disso, mas me sinto na obrigação de contabilizar quanto peso perdi toda vez que um deles, com a maior insensibilidade, vem se lamentar: “Engordei mais de um quilo só neste final de semana!”. Ah, você engordou, é? Pois eu emagreci.

A pedra filosofal

•21/04/2010 • Deixe um comentário

Espero o carro passar e atravesso a rua; a caminhada é curta até meu destino. Depois de duas quadras varridas de sol, chego à calçada à frente do terreno baldio. De uma fenda no cimento, ergue-se esguio o caule da planta, e apenas se desespreme da avareza do vão para se ramificar com avidez, esférica de tantas folhas, brotos e botões. Está acesa, vestida de verde e laranja, as pétalas ajoelhadas ao redor dos estames, em reverência, e convive pacificamente com as ervas daninhas que acarpetam o concreto. Escolho a flor maior, só não peço licença porque pedi-la não tornaria mais delicada a minha transgressão, tiro do bolso a tesoura e corto o ramo com a eleita. Não há ninguém na rua para julgar-me louca ou esquisita. Levo a flor nas duas mãos como se ela tivesse asas e pego o caminho de volta pra casa.

Em cima da mesa, há uma garrafa vazia de suco de uva, feita de vidro verde trabalhado. Encho-a de água e coloco nela a flor, que se acomoda, gira em meio círculo e vira as costas para mim. Com a flor roubada em seu vaso improvisado, tudo está pronto. Olho em volta para ver se surpreendo a transformação em curso. Há uma toalha de algodão florido sob a garrafa, sobre a mesa. No sofá, a manta de tear comprada na primeira vez em que fui à praia. A luz do sol entra cor de rosa, filtrada pela cortina axadrezada da cozinha. Há os livros preferidos quase bagunçados na estante, gente feliz nos porta-retratos, roupa de cama cheirando a lavanda no quarto. E há a flor, cor de laranja, em uma garrafa verde como seu caule, sobre a mesa. Mas transformação alguma se anuncia: atrás da cortina há apenas vidro, debaixo da toalha granito frio, sustentando as prateleiras tijolos. É. No fundo, eu já sabia que era mais complicado do que virar metal em ouro a alquimia necessária para fazer de lar um endereço.